Os 10 melhores poemas de Fernando Pessoa
“Pedimos
a 20 convidados — escritores, críticos, jornalistas — que escolhessem os poemas
mais significativos de Fernando Pessoa. Cada participante poderia indicar entre
um e 10 poemas. Escritor e poeta, Fernando Pessoa é considerado, ao lado de
Luís de Camões, o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da
literatura universal. O crítico literário Harold Bloom afirmou que a obra de
Fernando Pessoa é o legado da língua portuguesa ao mundo.
“Seus
poemas mais conhecidos foram assinados pelos heterônimos Álvaro de Campos,
Ricardo Reis, Alberto Caeiro, além de um semi-heterônimo, Bernardo Soares, que
seria o próprio Pessoa, um ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa e
autor do “Livro do Desassossego”, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa
no século 20.
Além de exímio poeta, Fernando Pessoa foi um grande criador de
personagens. Mais do que meros pseudônimos, seus heterônimos foram personagens
completos, com biografias próprias e estilos literários díspares. Álvaro de
Campos, por exemplo, era um engenheiro português com educação inglesa e com
forte influência do simbolismo e futurismo. Ricardo Reis era um médico defensor
da monarquia e com grande interesse pela cultura latina. Alberto Caeiro, embora
com pouca educação formal e uma posição anti-intelectualista (cursou apenas o
primário), é considerado um mestre.
Com uma linguagem direta e com a
naturalidade do discurso oral, é o mais profícuo entre os heterônimos. São seus
“O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e os “Poemas Inconjuntos”. Em
virtude do tamanho, alguns poemas tiveram apenas trechos publicados. Eis a
lista baseada no número de citações obtidas.”
Os
Eleitos:
Tabacaria
Poema em linha reta
O guardador de rebanhos
Ode marítima
Autopsicografia
Aniversário
Presságio
Não sei quantas almas tenho
Todas as cartas de amor…
O cego e a guitarra
Poemas aqui: Revista Bula, jornalismo Cultural
Cronologia:
13 de junho de 1888 - Nasce em Lisboa, às 3 horas da tarde,
Fernando Antônio Nogueira Pessoa.
1896 - Parte para Durban, na África do Sul.
1905 - Regressa a Lisboa
1906 - Matricula-se no Curso Superior de Letras, em Lisboa
1907 - Abandona o curso.
1914 - Surge o mestre Alberto Caeiro. Fernando Pessoa passa a
escrever poemas dos três heterônimos.
1915 - Primeiro número da Revista "Orfeu". Pessoa
"mata" Alberto Caeiro.
1916 - Seu amigo Mário de Sá-Carneiro suicida-se.
1924 - Surge a Revista "Atena", dirigida por Fernando
Pessoa e Ruy Vaz.
1926 - Fernando Pessoa requere patente de invenção de um Anuário
Indicador Sintético, por Nomes e Outras Classificações, Consultável em Qualquer
Língua. Dirige, com seu cunhado, a Revista de Comércio e
Contabilidade.
1927 - Passa a colaborar com a Revista "Presença".
1934 - Aparece "Mensagem", seu único livro publicado.
30 de novembro de 1935 - Morre em Lisboa, aos 47 anos.
FERNANDO PESSOA:
"Carta em que Fernando Pessoa esclarece
a origem de seus heterônimos"
A genialidade
com que Fernando Pessoa teria criado os seus heterônimos, bem como a riqueza
poética havida em cada um deles, sempre intriga e instiga-nos à compreensão. A
explicação abaixo é do próprio Pessoa e certamente será esclarecedora.
Carta a Adolfo
Casais Monteiro – 13 Jan. 1935
Caixa Postal 147
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.
“Meu prezado
Camarada:
Muito agradeço a
sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de,
propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de
cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais
vale, creio, o mau papel que o adiamento.
Em primeiro
lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que
escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que
não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se
lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os
meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À
parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é
permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou
Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe,
porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o
que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo
absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com
um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um
sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso,
muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a
«Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse
livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que
consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto,
incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos
postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual
de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não
poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros,
que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro.
Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz
entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições
(nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes
pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do
género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar
por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as
várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com
uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz,
com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor
estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo
secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente
manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar
Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela
aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o
premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos
críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente
nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente
talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não
estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa
quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem,
sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é
verdade — que estou simplesmente falando consigo).
Respondo agora
directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas
obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita, nas
condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação
unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando
uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar
pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se
assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o
posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias.
(Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora
respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono,
durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando
Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos.
Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo
que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que
«Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como
viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do
Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto
quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com
tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus
em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é
própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à
vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na
prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua primeira pergunta.
Se fui omisso,
diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por
enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para
dizer, Graças a Deus!
Passo agora a
responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se
consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço
de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou,
mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese,
porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não
enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus
heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e
para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na
minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para
dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos
histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de
Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a
vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente
aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…
Isto explica,
tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe
a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de
alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da
minha infância quase esquecida.
Desde criança
tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de
amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente
não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não
devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu,
me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história,
várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas
daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência,
que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando
um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua
maneira de encantar.
Lembro, assim, o
que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro
conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem
escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda
conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me,
com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o
tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de
Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a
tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é
mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência
para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente,
nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida
já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um
motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o,
imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome
inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e
gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei,
vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de
trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo… E tenho
saudades deles.
(Em eu começando
a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o
travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus
heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o
que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912,
salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de
índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de
Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo
Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei
uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente
desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e,
tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E
escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi
o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto
Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa
a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses
trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio,
também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a
Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a
sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente
— uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente
um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem
emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o
homem com o nome que tem.
Criei, então,
uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as
influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de
tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de
mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a
discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são
diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da
publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa
para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse
um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos
seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim
fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de
Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer
traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o
que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que
desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…
Creio que lhe
expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que
precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando
escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E,
é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das
Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado
lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais
Monteiro!
Mais uns
apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real
do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos.
Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro
do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no
Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase
alguma.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às
1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito oHORÓSCOPO para essa hora,
está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está
aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo
Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de
Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco
tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis;
Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de
judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo
de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis,
educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde
1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por
educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos
teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao
Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era
padre.
Como escrevo em
nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer
calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta,
que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso
para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que
aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou
cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de
raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um
semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da
minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a
afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a
esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o
português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez
de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou
de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura
estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio
de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o
tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para
que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu
conseguir escrever.
Falta responder
à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no
ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção
e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de
habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este
mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado
outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso,
interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema
do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica)
a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere
dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema
de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de
seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação
espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três
caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do
espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também),
caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o
que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos,
porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem
grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a
«iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua
pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu
poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do
Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o
que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus
dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em
dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar
(indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu
querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas
perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei
conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará
desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o
camarada que muito o estima e admira.
Fernando Pessoa”