O GURU DOS HIPPIES
Nobel de
Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do
século 20 e sua obra provoca uma espécie de culto místico. O autor do romance
“O Lobo da Estepe” quis mudar-se para o Brasil e, depressivo, foi paciente de
J. B. Lang e de C. G. Jung
POR EDGAR WELZEL
A Floresta
Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área
abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite
com a Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas
e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem
uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A
Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais
importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes
suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz
um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um
intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra
estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma
família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses
chamam-na de Floresta dos Vosgues.
Arte de
viver
Para a arte de
viver, é preciso saber a arte de ouvir,
sorrir e ter
paciência... sempre.
Em território
alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de
Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização
geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a
cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw
situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de
Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente
com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século
19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de
pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio
Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a
Inglaterra.
Durante quase
toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de comércio — com
estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e
artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura
típica da região.
O Sul da Alemanha,
a partir do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo
pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a
Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e
intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da
letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.
Foi neste
ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da
adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20.
Perscrutar a vida desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar
ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da
alma humana, acaba perscrutando a si mesmo.
Hermann Hesse, aos 20 anos |
Hermann Hesse
não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e
crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe
fora imposta pelo ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a
extremada religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os
Hesse, por gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços
missionários e na publicação de literatura religiosa.
Portanto, o
jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia
nada além do sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu
diário uma observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente:
“Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas
de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi
uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.
Hermann Hesse
foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas,
anseios e aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de
húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos
quais acabou encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida,
Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor.
Mesmo suas mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua
obra “O Lobo da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma
frase elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a
obtivera afinal após tantos anos”.
Para compreender
a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é
preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber
Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua
genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.
Em busca de Deus
Sempre andaram
em busca de Deus,
mas nunca em
busca de si mesmos.
E Ele não está
em outro lugar.
Não há um Deus
senão aquele dentro de cada um...
Sua vida é bem
documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os
Hesse, como da materna, os Gundert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo
e qualquer papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos,
cartões postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham
também os avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e
demais fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são
amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que
existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.
O avô paterno,
dr. Carl Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época
pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado,
em Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e
hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu
artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma ampla
autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a
conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular
correspondência até sua morte.
O avô materno,
dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus
estudos preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do
século 11 e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma
instituição de elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco
séculos de existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã,
como o astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos
Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor
Eduard Mörike.
O dr. Gundert
era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos
preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um
sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua
formação em Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês,
italiano, indu e malaiala. Terminados os estudos, passou um período na
Inglaterra e de lá partiu para Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou
como professor. Não demorou, interessou-se por atividades missionárias e
ocupou-se da área de seu interesse, as línguas.
Estudou vários dialetos indus,
traduziu a Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário
inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua
sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um
jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala,
inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se,
na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem
teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie
Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão
corretamente, mas, além de sua língua materna, o francês, dominava
perfeitamente o inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética,
era rigorosa e intransigente.
Começa a
aflição
Aquele que está
bem pode fazer muita coisa supérflua e insensata.
Quando o
bem-estar acaba e começa a aflição,
começa a
educação que a vida nos quer dar
Gundert
regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa.
Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas
linguísticas. No Estado indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande
cientista linguístico. O Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa
comemorativa. Gundert escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um
de seus genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma
biografia sobre o sogro.
Johannes Hesse
(1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na
Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô
materno alemão casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele
próprio nascido em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas
notas autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha
nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um
passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma
francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante
nacionalismos e limites fronteiriços”.
Em 1919, ao
decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura,
pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis
vigentes da época, como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado
com uma mulher nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo.
Entre 1883 e 1890 e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio,
tinha também os direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.
Johannes Hesse,
pai de Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em
anotar e registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser
missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo;
ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o
sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com
a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de
Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais
encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava
um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam
comunicar-se em inglês.
Hermann Hesse
conheceu muito bem o avô materno, Hermann Gundert, com o qual manteve estreito
contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto
autobiográfico “A Meninice de um Mágico”, Hermann Hesse fala com
sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o
idoso, respeitado, poderoso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais
poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e
poderes… sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que
sabia de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que
trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele
escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês,
bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na
língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.
Fazê-lo
sempre
Se temos a
possibilidade de tornar mais feliz e
mais sereno
um ser humano, devemos fazê-lo sempre.
Diante desse
manancial cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno
Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai,
teve, desde tenra idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço
missionário, como foram seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda
religiosidade, o jovem Hesse decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam
assim os conflitos com Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria
o filho como missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a
ministrar-lhe aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde,
comenta esse período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca
me preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria
seguir”. Uma das coisas que Hermann admirava em seu pai, que falava várias
línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.
Os primeiros
intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros
quatro anos de ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão
mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos
corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades.
Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um
trauma escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual
não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em
suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das
Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Giebenrath,
em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos
educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única
instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola
estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela
mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a
mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw
quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.
Em 1891, o pai
matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o
avô materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der
Stadt, pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo
ginásio do mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586
a 1589).
“Serei escritor
ou nada”
Em Maulbronn, o
seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele
mesmo ensaiava com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas
aos pais eram em forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas
vivia com receio de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai
escrevendo-lhe uma carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”.
Mais tarde Hesse confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais
compreendi quanta semelhança eu tinha com o meu pai”.
Depois de sete
meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias
depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado
numa clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em
Cannstatt, um bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann
deixou o estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde
suportou apenas três dias.
Regressou à casa
dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava
relógios para torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio.
Durante esse período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos
para emigrar para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.
O relacionamento
com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O
relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já
publicara textos, comentários e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um
pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria.
Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho
do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio
e disse nunca ter perdoado a mãe.
Bem lá no fundo
Bem lá no fundo
você sabe que só existe uma única mágica,
um único
poder, uma única salvação, e que ela se chama amor.
A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance “Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.
Às margens do
lago, a criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em
1906 publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em
primeira pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa
experiência de amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno,
Heiner e Martin. Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área
que circunda a casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do
que plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma
sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as
mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.
Em 1911 Hesse
parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e
onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao
regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não
encontrar lá o que os pais idolatravam.
Enquanto isso
Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não
ser capaz de lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para
dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é
internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de
parentes e amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus
bens em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde
aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do
fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços
biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços
autobiográficos incluiu em sua obra.
No início da
Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços
humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com
a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica
“Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de
convenções sociais.
Em 1916 Hermann
Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório
Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o
psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a
guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com
a pintura aquarelista.
O guru dos
hippies
Em 1919 publica
“O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para
ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim
de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais
rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”.
Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no
Tessino, onde permanece até 1931.
Ainda em 1919
Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com
Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de
1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que
interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda
depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o
renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o
qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente
do que o Novo Testamento”.
Nesse entretempo
Hesse publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo
ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em
1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon
Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um
abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a
sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com
os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu
amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca
mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é
propriedade particular.
Dinheiro e poder,
e todas as coisas pelas
quais as pessoas matam a tiros,
pouco valem para o homem que
encontrou a si mesmo
e todas as coisas pelas
quais as pessoas matam a tiros,
pouco valem para o homem que
encontrou a si mesmo
Em 1943, doze
anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em
1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Não é possível
comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há
resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos
dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo
para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua
obra.
Hermann Hesse
ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me
que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são
os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou
logo após ter recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried
Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares.
Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o
qual o americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão
desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos,
as obras de Hermann Hesse tornaram-se sucesso também nos Estados Unidos quando
a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com
os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro
fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda
“Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra
influenciasse várias gerações.
Hermann Hesse,
além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em
responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu
mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas
ainda estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados
homens da literatura, como Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas
também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe
escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia
questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às
perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à
tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se
em Maulbronn.
Até agora apenas
parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o
lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um
total de dez volumes.
Apenas “ler”
Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor
maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade
natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu
acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi
transformada em museu, e em Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano,
encontra-se a terceira parte de seu acervo.
A única arma que
Hesse usou foi a caneta
É oportuno
mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi
grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em
1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores
italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de
Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano,
um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau
Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua
alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão
atualizada em 2012.
Otto Maria
Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de
sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a
escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de
vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a
sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é
correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.
Quem caminha
pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da
ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze
em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão.
O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.
O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.
Hermann Hesse
morreu em 9 de agosto de 1962, em Montagnola, aos 75 anos. Transcorridos 50
anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias,
festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre
do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam
vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de
Hermann Hesse aumenta em todos os quadrantes.
Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.
Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.
*Postagem: Revista Bula
*Imagens: Reprodução e El Club de los Onironautas
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